Cem metros rasos

 

 

         Durante os jogos olímpicos de 1996, ocorrido em Atlanta, EUA, o atleta canadense Donavan Bailey bateu o recorde olímpico dos 100 m rasos com o tempo de 9,84 s. Segundo informações da imprensa, ele saiu com um atraso de 0,17 s e, portanto, o tempo de percurso foi de 9,67 s.

Nas Olimpíadas de 2000 o melhor tempo foi de 9,87 s e, portanto, o recorde olímpico ainda é o de 1996. Em 2002 o atleta americano Tim Montgomery bateu o recorde mundial dos 100 m com um tempo de 9,78 s, ligeiramente menor que o tempo de Donavan Bailey. Portanto, o recorde olímpico ainda é o de Donavan Bailey. Vejamos se na Grécia, agora em 2004, esse recorde é superado.

Mas o que nos interessa aqui não é o feito olímpico daqueles atletas, mas aproveitar seus desempenhos para estudar um pouco da mecânica newtoniana escondida numa corrida de 100 m rasos. Para isso, vamos tomar como exemplo o resultado obtido por Donavan Bailey em 1996.

 

 

Velocidade

 

A velocidade média de Donavan Bailey naqueles poucos segundos foi de

 

    ,   (1)

 

o que equivale a 37km/h.

         Mas a velocidade durante a prova não foi, obviamente, constante. A figura 1 mostra a velocidade do atleta em função do tempo. Essa curva foi construída a partir de vários dados divulgados pelos meios de comunicação, como a velocidade máxima e o instante que ela foi atingida, o tempo total de percurso e as velocidades em alguns instantes. Com essas informações foi possível determinar uma expressão aproximada para a velocidade do atleta. Essa expressão é

 

   ,   (2)

 

sendo que t varia entre 0s e 9,67s.

Essa equação não contém todos os detalhes da prova. Por exemplo, essa equação corresponde a uma aceleração inicial de cerca de 6 m/s2, valor inferior ao observado, da ordem de 9 m/s2. Além disso, a velocidade do atleta não varia de forma regular, como implica a eq. (2): parte do tempo o atleta está “no ar”, sem que nenhum de seus pés toque o solo. Nesse intervalo em que o atleta não tem nenhum pé em contacto com o solo sua velocidade decresce ligeiramente, por causa da resistência do ar. Quando o atleta toca o solo ele acelera seu corpo por um breve intervalo de tempo, especialmente no início da corrida. Entretanto, esses detalhes, que podem ser relevantes em uma análise feita por um treinador, podem ser ignorados em uma análise física mais geral.

 

Figura 1 – Velocidade em função do tempo em uma corrida de cem metros rasos.

 

Note que no início da corrida a variação de velocidade do atleta é bastante intensa (ou seja, aceleração grande). Por volta dos 5,5 s o atleta atinge uma velocidade máxima, da ordem de 45 km/h! Muitos carros não conseguem atingir essa velocidade em tão pouco tempo, entre eles, o meu.

Mas alguma coisa estranha acontece após os 5 s ou 6 s de prova: o atleta começa a perder velocidade. Vamos discutir isso um pouco mais abaixo.

 

 

Posição em função do tempo

 

A posição em função do tempo pode ser facilmente determinada integrando-se[1] a equação (2):

 

       .        (3)

 

(É bom observar que as equações (1) e (2) são válidas apenas até t=9,67s.) A figura 2 mostra a posição do atleta em função do tempo.

 

 

 

Aceleração e desaceleração

 

         Os resultados acima permitem algumas conclusões interessantes sobre o desempenho de um atleta naqueles poucos segundos que dura uma prova de 100 m. Nos primeiros segundos o atleta apresenta uma aceleração positiva bastante intensa, como mostra a figura 3, construída a partir da derivada em relação ao tempo[2] da expressão (2). Nos primeiros segundos ele está acelerando seu corpo, aplicando contra o solo uma força com uma componente horizontal bastante intensa. Por volta do instante 6 s sua aceleração se anula e ele começa, então, a perder velocidade, certamente um mau negócio para quem está querendo vencer uma competição. Por que essa perda de velocidade? O que ocorre é que a componente horizontal da força que o atleta aplica contra o solo diminui de forma muito marcante na medida em que o tempo vai passando, tornando-se insuficiente para, sequer, vencer a resistência do ar; ou seja, o atleta consumiu quase toda a energia que tinha armazenada nos músculos e não consegue mais fazer força suficiente para vencer a resistência do ar e para levantar seu corpo a cada vez que um de seus pés toca o solo. A conseqüência disso é a perda de velocidade.

 

          

 

 

Potência mecânica

 

         Podemos fazer uma discussão quantitativa do desempenho de um atleta correndo os 100 m rasos do ponto de vista da potência dissipada durante a prova. A potência dissipada pelo atleta tem alguns componentes importantes. Um deles é a aceleração do seu corpo. Essa componente é dada pelo produto da força (ma) pela velocidade,

 

    (4)

 

onde m é a massa do atleta, a sua aceleração e v a velocidade. Deve-se notar que essa potência é nula no início da corrida, apesar da grande força que ele está aplicando para acelerar seu corpo, uma vez que a velocidade inicial é nula. Essa potência tende a aumentar como conseqüência do aumento de velocidade e tende a diminuir, como conseqüência da redução da aceleração.

         Outra fonte que demanda gasto de energia por parte do atleta é a resistência do ar. A potência dissipada neste caso pode ser estimada como

 

   ,     (5)

 

sendo v dado em m/s. O termo v3 pode ser qualitativamente interpretado como segue. A força que o atleta deve fazer para “atravessar” o ar depende da quantidade de ar que o atleta deve atravessar por segundo e é, portanto, proporcional à sua velocidade; além disso, a força depende da quantidade de movimento que o atleta transfere ao ar e, portanto, também proporcional à sua velocidade. Assim, a força é proporcional ao quadrado da velocidade do atleta, v2. Finalmente, como potência é o produto da força pela velocidade, há um terceiro termo em v, resultando no fator v3 da equação (5). O fator 0,30 corresponde ao produto da densidade do ar por um fator que depende da área frontal do atleta (ou daquilo que atravessa o ar) e também de sua forma: esse fator é tão menor quanto mais “aerodinâmica” for a forma daquilo que atravessa o ar.

Além desses termos, há um pequeno dispêndio inicial de energia que deve ser considerado, uma vez que o atleta inicia o movimento com o corpo abaixado, levantando logo em seguida. Esse termo não é realmente muito importante, mas mesmo assim não vamos desprezá-lo. A potência dissipada para levantar o corpo, de cerca de meio metro, pode ser estimada como

 

     .     (6)

 

Essa expressão corresponde a um gasto total de energia de cerca de 300 J concentrado nos primeiros segundos da competição.

         Um fator adicional da perda de energia corresponde ao fato que durante a corrida o atleta faz um movimento de sobe e desce com o seu corpo. Se supusermos que o centro de massa do atleta sobe (e desce) cerca de 10 cm a cada vez que o atleta toca o chão, e que isso ocorre cerca de 3 vezes por segundo, concluiremos que a potência média dissipada por um atleta de 85 kg na Terra (onde a aceleração da gravidade é 9,8m/s2) é de 250W. Vamos considerar essa potência constante durante toda a prova, embora a energia seja gasta “aos trancos”, cada vez que o atleta toca o solo/.

Podemos então escrever uma expressão completa para a potência dissipada pelo atleta:

 

   .   (7)

 

A figura 3 mostra cada um dos termos dessa equação e também a soma deles. A pequena exponencial corresponde ao esforço feito para elevar o corpo a partir da posição inicial; a curva constante corresponde ao movimento de sobe e desce do corpo; a curva que inicia em zero e sobe até pouco mais de 500 W, tornando a cair novamente corresponde à resistência do ar; a curva que sobe até um máximo de cerca de 1800 W, caindo a seguir para valores negativos corresponde à potência para acelerar o corpo. A potência mecânica total dissipada pelo atleta é a soma de cada um desses termos.

 

 

Figura 4 – Potência dissipada pelo atleta em uma corrida de 100 m.

 

 

         Gasto total de energia

 

         O gasto total de energia pode ser calculado integrando-se a potência total dissipada. Essa integral é mostrada na figura 5. Nos cerca de dez segundos de corrida são gastos quase 10.000 J. Muito? 10.000 J é a quantidade de energia em 2 g ou 3 g de um alimento rico em carboidratos, como pão. Entretanto, o grande mérito de um atleta bem treinado é gastar toda essa energia em um tempo tão curto.

 

Figura 5 – Energia mecânica dissipada durante uma corrida de cem metros rasos.

 

         Vamos comparar o desempenho de um atleta com o de uma pessoa “comum”. A potência mecânica de um atleta velocista é, em média, 10.000J/10s=1.000W. Isso corresponde a subir 5 degraus de uma escada comum a cada segundo, ou um andar a cada 4 s. Por quanto tempo conseguimos isso?

 

 



[1] Integrar uma equação equivale a determinar a “área” entre a curva e a abscissa. Se você tiver paciência, imprima o gráfico de velocidade em função do tempo e estime a essa área sob a curva vxt para diferentes instantes. Note que essa área tem a dimensão de m/s vezes s, ou seja, de metro.

[2] Derivada é um operação matemática que consiste em determinar a inclinação de uma curva a cada ponto. Com uma régua você pode determinar a derivada da velocidade em relação ao tempo usando a figura 1: (a) em cada ponto da curva desenhe uma reta tangente à curva; (b) calcule a inclinação dessa reta. Essa inclinação é a derivada da curva.