Alguns aspectos da óptica do olho humano

(Versão preliminar preparada por Otaviano Helene, Instituto de Física, USP e André Frazão Helene, Instituto de Biociências, USP)

 

         Resumo

 

         Este trabalho descreve vários aspectos da óptica do olho humano adotando uma abordagem progressiva. Iniciaremos estudando um sistema visual muito simples e iremos incluindo, aos poucos, os vários ingredientes que compõem o olho humano. Inicialmente, o olho humano é aproximado apenas por uma esfera oca, na qual a luz penetra por um pequeno orifício e incide na superfície oposta a ele, onde está a retina. Esse sistema simples não permite a formação de uma imagem, mas apenas a identificação da direção da fonte de luz. Para melhorar a qualidade desse sistema óptico, a esfera oca é então preenchida por um material com índice de refração igual ao das substâncias (humores aquoso e vítreo) que preenchem o olho humano. A imagem formada fica, assim, um pouco menos mal definida, mas ainda incapaz de revelar a forma de um objeto. A seguir, é introduzida a córnea, a qual melhora muito a qualidade da imagem. Mas a córnea do olho humano ainda não garante a formação de imagens nítidas nem possibilita a adaptação para objetos a distâncias diferentes. Para corrigir essas falhas, surge o cristalino, uma lente convergente e de distância focal ajustável. Essa seqüência – de um sistema visual muito simples até um completo olho humano – segue, aproximadamente, a mesma seqüência que o processo evolutivo seguiu ao longo de 500 milhões de anos. As deduções necessárias são feitas usando-se equações básicas da óptica geométrica. Finalmente, é apresentado um modelo construído com uma esfera transparente que permite ilustrar vários aspectos da visão humana.

 

 

         I – Introdução

 

         As primeiras estruturas biológicas de captação da luz, precursoras do olho, surgiram há cerca de meio bilhão de anos.  O sistema mais primitivo consiste apenas de uma superfície sensível à luz, incapaz de sequer fornecer informação sobre a origem da fonte luminosa (Fig. 1a). As estruturas mais simples e que têm alguma similaridade com os olhos mais sofisticados são concavidades em cujas paredes internas, oposta a uma abertura, há células sensíveis à luz (Fig. 1b). Nessas estruturas simples, a luz proveniente de um único ponto luminoso atinge várias regiões da superfície fotossensível, não havendo formação de imagens definidas. Esse sistema apenas fornece algumas informações sobre a origem da fonte luminosa.

         Ao longo do tempo, os processos evolutivos propiciaram o surgimento de órgãos visuais mais adequados. Um desses é um olho no qual a luz penetra por um pequeno orifício (Fig. 1c), permitindo a formação de imagens pelo efeito “câmara escura”: desde que o orifício pelo qual a luz penetra seja suficientemente pequeno, cada ponto luminoso ilumina apenas uma pequena região da superfície fotossensível. Sistemas visuais que se beneficiam do efeito câmara escura são encontrados em alguns moluscos.

 

 

 

 

         Entretanto, o efeito câmara escura só permite a formação de imagens nítidas quando a abertura por onde entra a luz, a pupila do nosso olho, é muito pequena. Mas quanto menor a abertura, menos luz penetra no olho, prejudicando a acuidade visual, em especial em situações de pouca luminosidade. Portanto, pupilas bem pequenas resolveriam um problema, o da qualidade da imagem, mas criariam outro: o comprometimento da visão em ambientes com pouca luz.

         Alguns poucos animais apresentam olhos que usam apenas o efeito câmara escura para a formação de imagens. Entretanto, o processo evolutivo seguiu outros caminhos: um deles envolve a presença de algum tipo de lente, como ilustrado na Fig. 1d. Nesse caso, a lente faz com que um ponto luminoso ilumine apenas um ponto da região fotossensível. Isso permitiria a formação de imagens bem definidas mesmo quando a abertura por onde entra a luz é grande.

         A Fig. (1e) ilustra um olho dotado de uma córnea e uma lente interna, como são os nossos. Se essa lente interna pode ter sua curvatura ajustável, então esse sistema permite focar objetos a distâncias diferentes.

         O olho é uma estrutura que surgiu várias vezes ao longo do processo evolutivo, de maneira independente. Há diversos tipos de órgãos visuais na natureza: alguns têm sistemas de múltiplas lentes; outros combinam o efeito câmara escura com lentes; alguns são tão simples que apenas conseguem perceber a presença de luz.

Neste trabalho, vamos discutir alguns aspectos ópticos do olho humano. Entretanto, no lugar de estudar seu sistema óptico integralmente, atacaremos o problema de uma forma seqüencial, parecida com a da evolução descrita acima. Primeiro, estudaremos a imagem formada na retina caso nosso olho fosse uma simples esfera oca, opaca e com um pequeno orifício (a pupila) por onde entra a luz. Como veremos, esse sistema visual é muito ineficiente. O passo seguintes será preencher a esfera com um material transparente de índice de refração igual ao do material que preenche grande parte do nosso globo ocular, os humores vítreo e aquoso. A imagem, quando comparada com o olho oco, será melhor, mas ainda sem nitidez suficiente para permitir perceber formas, ainda que grosseiramente. O passo seguinte é estudar a função da córnea, que melhora a qualidade da imagem, mas tem, ainda, duas limitações: não permite nitidez total e muito menos adaptação para focar objetos a distâncias diferentes. Esses problemas ficam por conta do cristalino, uma lente interna ao olho e de distância focal adaptável.

Finalmente, é apresentado um modelo de olho construído com uma esfera de material transparente (de vidro, por exemplo) e coisas simples que temos à mão. Com esse modelo, podemos ilustrar vários aspectos da óptica de um olho humano e perceber como vários ingredientes (a pupila, os humores e a córnea) colaboram para a formação de uma imagem nítida na retina de um olho normal.

 

 

         II – Uma simples esfera

 

         a) Uma aproximação útil

         Antes de começarmos a estudar a óptica do olho humano, vamos fazer uma aproximação que será bastante útil. Em geral, estamos interessados na formação de imagens de objetos que estão a cerca de 30 cm ou mais do nosso olho. Como o diâmetro de uma pupila não excede alguns poucos milímetros, a abertura angular máxima entre raios luminosos, provenientes de uma fonte luminosa puntiforme, que incidem sobre ela será muito pequena, não mais do que uma fração de grau. Portanto, como é feito em muitos estudos da óptica de lentes, a primeira aproximação será considerar os raios de luz incidentes no olho e provenientes de um ponto luminoso como sendo paralelos. (A figura 2 ilustra essa aproximação.) Isso corresponde a um ponto luminoso no infinito.

 

        

b) Um olho oco

Como um primeiro modelo, vamos considerar o olho humano como uma simples esfera oca, quase totalmente opaca, com exceção de uma pequena região, a pupila, por onde entra a luz. (A parte oposta à pupila, até um pouco além do equador do olho, é revestida por uma camada com células sensíveis à luz, os cones e bastonetes.) Com esse modelo, é fácil perceber que um ponto luminoso bem distante do olho iluminaria uma região circular da retina (a superfície interna do olho populada por células sensíveis à luz) de raio igual ao da pupila. Para fins de comparações posteriores, vamos supor que o raio da pupila seja de 2 mm; esse seria, então, o raio do borrão formado pelo ponto luminoso. Com um olho assim tão simples, apenas poderíamos perceber de onde vem a luz.

O passo seguinte é preencher esse olho, inicialmente oco, com um material de índice de refração igual a 1,34, o índice de refração dos humores vítreo e aquoso que preenchem nosso olho. (Algumas das características do olho humano aparecem na Tabela 1. O Apêndice A apresenta um esquema com os principais componente ópticos do olho humano.)

 

Tabela 1 – Algumas características típicas do olho humano (A Ref. [2] apresenta vários dados relativos ao olho humano. Os valores desta tabela foram baseado nas informações dessa referência, adicionadas de outras informações disponíveis na rede de computadores.).

 

Raio de curvatura

Espessura

Índice de refração

Córnea

Anterior 0,8 cm

Posterior 0,65 cm

0,06 cm

1,38

Cristalino

anterior 0,8 cm

Posterior 0,6 cm

 

0,4 cm

1,40

Humor vítreo e humor aquoso

--

--

1,34

Globo ocular

1,2 cm

 

 

 

 

         c) O olho sem córnea e sem cristalino

A Figura 3 ilustra o que ocorre com dois raios luminoso, A e B, que incidem paralelamente na pupila desse modelo simples do olho humano. (Lembre que esses dois raios são provenientes de um único ponto luminoso bem distante.) Um dos raios incide no centro da pupila e o outro em sua borda. Os ângulos α e β são suficientemente pequenos para que possamos aproximar seus senos pelos próprios valores dos ângulos (desde que os ângulos sejam expressos em radianos); considerando as dimensões envolvidas, podemos verificar que o erro dessa aproximação é desprezível em comparação com as precisões dos cálculos que faremos. Podemos também aproximar o comprimento do arco definido pelas interseções de A e B com o círculo que define o contorno do olho pela distância d indicada na Fig. 3.

 

O passo seguinte é descobrir onde os raios A e B se encontrariam. Para isso, vamos usar a lei de Snell:

 

   .   (1)   

 

Usando a aproximação dos senos pelos próprios ângulos, temos

 

   .   (2)

 

         Por argumentos geométricos é fácil deduzir os valores dos ângulos indicados dentro das “caixas” na Fig. 3. Considerando as aproximações dos senos pelos argumentos e observando a Figura 3, vemos que a distância d é dada por

 

  ,    (3)

 

onde r é o raio do olho. A distância d também é dada por

 

   ,   (4)

 

onde F é a distância entre a superfície anterior do olho e o ponto em que os prolongamentos dos dois raios se encontrariam caso o olho se prolongasse além da retina.

         Combinando as equações (2), (3) e (4), obtemos

 

   .    (5)

 

Para que a imagem de um ponto na retina fosse nítida, F deveria ser igual a 2·r, ou seja, os dois raios deveriam se encontrar exatamente na superfície da retina. Mas isso só ocorreria se o índice de refração do globo ocular fosse igual a 2. Entretanto, substâncias produzidas por seres vivos não têm índices de refração assim tão elevados, sendo usualmente, bastante próximos do índice de refração da água (n=1,33). No caso dos humores vítreo o aquoso, o valor médio do índice de refração é da ordem de 1,34. Assim, temos

 

   ,   (6)

 

onde usamos r=1,2 cm, uma boa aproximação para o olho humano.

Ou seja, os raios A e B se encontrariam muito além da retina. Portanto, um ponto luminoso distante não daria origem a um único ponto iluminado na retina, mas, sim, a uma mancha luminosa, um borrão, ilustrado na Figura (3).

         Esse borrão, entretanto, é menor do que o borrão que seria formado caso o olho fosse oco, cujo raio seria igual ao raio da pupila, estimado acima em 2 mm. O borrão teria um raio de aproximadamente 1 mm (que pode ser estimado a partir das dimensões típicas do olho, do valor de F acima e da geometria indicada na Figura 3), bem melhor do que aquele formado apenas pela pupila, mas ainda um borrão.

 

 

         III – A córnea

 

Apenas preencher a cavidade esférica do globo ocular com uma substância é insuficiente para garantir a formação de uma imagem nítida na retina. Assim, o processo de seleção natural nos forneceu outra solução: cobrir a parte frontal do olho com uma córnea. A córnea é a parte transparente, frontal, do nosso olho, representada esquematicamente na Figura 4. A córnea tem índice de refração aproximadamente igual a 1,38. Sua superfície anterior é aproximadamente esférica, com raio da ordem de 0,80 cm, inferior, portanto, ao raio do globo ocular, que é da ordem de 1,2 cm. A superfície posterior, também aproximadamente esférica, tem um raio de cerce de 0,65 cm. A espessura da córnea em seu polo (seu ponto central) é da ordem, de 0,06 cm.

Com essas características, é possível ver que a córnea á uma lente mais espessa nas bordas do que no centro. Com os meios nos quais ela está imersa, ar de um lado e humor aquoso do outro, têm índices de refração menores do que o dela, seu papel é de uma lente divergente. Se essa fosse a única característica da córnea, sua contribuição seria no sentido de piorar a qualidade da imagem formada, pois faria com que o foco se afastasse ainda mais da retina.

Entretanto, observe que a Eq. (5), que relaciona a posição em que a imagem está focada com o raio de curvatura da superfície na qual a luz incide, indica que quanto menor este último, menor o valor de F. Assim, o papel fundamental da córnea é dar ao olho um raio de curvatura menor do que aquele que adotamos quando aproximamos o olho, na região onde a luz incide, por uma simples esfera. A capacidade de convergência da córnea por causa de seu raio de curvatura compensa o efeito de lente divergente que ela também tem.

 

        

         Para determinar a trajetória de um raio luminoso considerando a córnea, vamos usar a equação básica de um dioptro esférico, deduzida no Apêndice B (Equação B6). Vamos aplicar essa equação considerando o ponto P infinitamente distante da superfície do olho. Acharemos, inicialmente, o ponto para o qual a luz de um ponto luminoso muito distante convergiria considerando apenas a primeira superfície da córnea (a superfície anterior); esse é o ponto imagem. A seguir, usaremos a posição desse ponto como sendo o objeto para a segunda superfície da córnea e a partir dele calcularemos a imagem formada por essa superfície. Os raios das superfícies são Ra=0,80 cm e Rp=0,65 cm, correspondentes às superfícies anterior e posterior da córnea, respectivamente. A equação que obtemos para a distância entre a imagem formada por ambas as superfícies da córnea até sua superfície posterior, q, é

 

   ,   (7)

 

onde nh e nc são, respectivamente, os índices de refração dos humores (1,34) e da córnea (1,38). Substituindo os valores numéricos nessa última equação, obtemos q=3,16 cm. Ou seja, a imagem de um ponto estaria focada a essa distância da superfície posterior da córnea. Como a superfície posterior da córnea coincide, muito aproximadamente, à superfície do globo ocular usada no cálculo da seção anterior, concluímos que o ponto no qual a imagem estará focada ainda está além da retina (lembre que estamos considerando um globo ocular cujo comprimento é de 2,4 cm), entretanto, mais perto dela e, portanto, dando origem a um borrão menor.

         Usando os mesmos argumentos geométricos da seção II-c, podemos calcular o tamanho do borrão formado por um ponto luminoso infinitamente distante do olho: ele teria um raio de aproximadamente 0,5 mm. Lembre-se que sem a córnea o raio do borrão seria da ordem de 1 mm; essa redução ilustra o papel da córnea na formação de uma imagem na retina.  A tabela 2 compara o tamanho do borrão formado por um ponto luminoso nos três casos estudados: apenas um orifício de raio 2 mm; um olho preenchido com um material de índice de refração igual a 1,34; e o mesmo olho com uma córnea. A Figura 5 ilustra, aproximadamente, como seriam vistos os faróis de um veículo a uma centena de metros de distância nos vários casos estudados. A imagem formada na retina no caso de um olho preenchido pelos humores e com uma córnea é aquela inferior direita na Fig. 5, ainda muito borrada.

Para que a imagem de um ponto seja um ponto, é necessária ainda uma lente: o cristalino.

        

 

 

 

 

 

 

 

Tabela 2 – Tamanho do borrão formado na retina por um ponto luminoso infinitamente distante considerando uma pupila com raio 2 mm.

 

 

 

 

 

 

Olho oco (do tipo câmara escura)

Olho preenchido pelos humores com n=1,34

Olho com córnea

Olho com córnea e cristalino

Raio do borrão

2 mm

1 mm

0,5 mm

É um ponto

Figura 5 – Como seriam vistos os faróis de um veículo a cerca de 100 m de distância (da esquerda para a direita e de cima para baixo): visão perfeita; se o globo ocular fosse oco; globo ocular preenchido por material de índice de refração 1,34; olho com córnea, mas sem cristalino. A distância entre os dois faróis na imagem formada na retina é da ordem de 0,5 mm.

 

 

         IV – O cristalino

 

         A parte central da retina é uma região especial: ela é densamente populada de células sensíveis à luz e, melhor ainda, células capazes de distinguir cores, os cones. (Essa região é uma espécie de buraco e, por causa disso, chamada de fóvea.) Embora essa parte da nossa retina corresponda a bem menos do que 1% de sua superfície, cerca de 50% dos nervos ópticos estão ligados a células dessa região. O diâmetro da fóvea é da ordem de 1 mm e é nela que são projetadas as imagens que somos capazes de distinguir com precisão, como as letras deste texto ou os detalhes da fisionomia de uma pessoa. Por exemplo, a Figura 5 mostra a imagem projetada na retina de dois faróis de um veículo a cerca de cem metros de distância; a distância entre as imagens dos dois faróis é da ordem de 0,5 mm e, portanto, se é para eles que estamos olhando, essa imagem é formada inteiramente na fóvea. Dispondo apenas do globo ocular, preenchido por um líquido, e da córnea, vemos que as imagens dos dois faróis estariam superpostas. Portanto, não poderíamos distingui‑los, independentemente da qualidade da superfície fotossensível.

         Uma das funções do cristalino é colocar ordem nas coisas e deixar a imagem no foco. (A outra função do cristalino é adaptar a distância focal para objetos a distâncias diferentes.)

         O cristalino é uma lente biconvexa, cujos raios de curvatura anterior e posterior são da ordem de 0,8 cm e 0,6 cm, respectivamente. (De fato, esses raios são variáveis, pois o cristalino é uma lente flexível cuja curvatura é controlada por pequenos músculos – os músculos ciliares.) Como o índice de refração do cristalino é superior ao dos humores, suas duas superfícies contribuem para fazer o feixe luminoso convergir. Vamos ver para que ponto eles convergiriam usando a equação básica do Apêndice B. Inicialmente, vamos considerar sua superfície anterior, de raio de curvatura Ra=0,8 cm.

A imagem formada pela córnea está a 3,16 cm depois dela. Considerando que a distância entre a córnea e a superfície anterior do cristalino é de 0,35 cm, vemos que o objeto está a p=-3,16+0,35 cm (negativa e, portanto, correspondendo a um objeto virtual) em relação à primeira superfície do cristalino. Assim, a eq. B6 fornece

 

       (8)

 

e, portanto, q1=2,46 cm. Vamos aplicar a mesma equação para a superfície posterior do cristalino. Neste caso devemos considerar que q1 é a distância entre a primeira superfície do cristalino e a imagem formada por ela. Portanto, o objeto para a segunda superfície está a uma distância -2,46+0,40 cm=-2,06 cm. Assim, temos

 

   .   (9)

 

(Note que usamos o valor -0,6 cm para o raio da superfície posterior do cristalino, seguindo as convenções adotadas nos cálculos apresentados no Apêndice B.) Portanto, q2=1,63 cm é a distância entre a imagem e a superfície posterior do cristalino. Para sabermos a que distância esse ponto está em relação à superfície posterior da córnea, temos que somar a espessura do cristalino, 0,40 cm, e a distância entre este e a córnea, 0,35 cm. O resultado é 2,38 cm. Ou seja, essa imagem estará quase exatamente na superfície da retina (lembre-se que o diâmetros do olho humano é da ordem de 2,4 cm). Esse quase não é devido a nenhum defeito da visão humana, mas, sim, fruto das muitas aproximações feitas.

 

         V – Modelo do olho humano

         Como a característica mais marcante do olho humano é ser uma esfera transparente, podemos começar a estudá-lo construindo um modelo com uma esfera maciça de vidro[1], que pode ser encontrada em lojas de produtos de decoração ou de vidros em geral. Esferas com diâmetro de 5 cm são suficientemente boas para construir o modelo proposto. Com essa esfera e alguns componentes mais, podemos fazer um modelo simples de um olho humano [3].

Para que uma esfera de vidro se pareça com um olho, a primeira coisa que devemos fazer é uma retina e uma pupila. A pupila pode ser feita cobrindo aproximadamente metade da esfera com papel alumínio e fazendo um pequeno orifício, ao qual chamaremos de pupila. Para que possamos ver a imagem formada na retina, a outra metade da esfera deve ser coberta com um material branco translúcido, como os materiais usados para fazer sacos plásticos de embalagens. A figura 6 ilustra esse modelo. Um objeto bem iluminado ou luminoso, como um abajur, é projetado na retina e sua imagem pode ser vista através do plástico translúcido.

 

 

 

 

A figura 7 é uma fotografia de um olho feito com uma esfera de vidro, papel alumínio e saco plástico. Como o índice de refração do vidro é aproximadamente 1,5, pela Eq. 5 podemos perceber que a imagem estaria no foco apenas se o olho fosse bem alongado. Como não é esse o caso, podemos ver que a imagem do tubo de cola da Figura 8 está fora de foco e, claro, totalmente invertida (de ponta cabeça e trocadas esquerda com direita).

 

Figura 7 – Fotografia do modelo de olho humano feito com uma esfera de vidro.

 

 

Figura 8 – Imagem projetada na “retina”de um modelo do olho humano: a imagem aparece borrada por causa da ausência de uma córnea e, claro, invertida.

 

 

         Entretanto, uma simples esfera já é capaz de produzir imagens na retina, ainda que “borradas”, e é possível perceber os aspectos mais marcantes de um objeto e o fato que o próprio globo ocular contribui para a formação de uma imagem nítida na retina.

         Para melhorar a qualidade da imagem e colocá-la no foco, precisaríamos de uma córnea e de um cristalino. Mas como o modelo é maciço, não temos como colocar um cristalino. Entretanto, uma lente convergente colocada na frente da abertura que simula a pupila pode fazer as funções de ambos os elementos, córnea e cristalino. A figura 9 mostra a imagem  formada quando uma lente convergente apropriada é colocada na frente da pupila.

         Usando várias lentes, convergentes ou divergentes, podemos, com o modelo, ilustrar como são vistas as imagens por pessoas com miopia ou hipermetropia e, também, qual o efeito de lentes corretoras.

 

 

Figura 9 – Paisagem de uma janela projetada na “retina”. Uma lente convergente foi colocada na frente (e bem próximo) da pupila para fazer o papel de córnea e “focar” a imagem na “retina”. Note a inversão total da imagem: de ponta cabeça e invertida na direção direita-esquerda (o lado vertical da janela que está mais distante, sua parte esquerda na fotografia, aparece menor na retina e em seu lado direito).

 

 

 

         Apêndice A – Principais elementos ópticos do olho humano

 

         A Figura A1 mostra, de forma simplificada, os principais elementos ópticos do olho humano.

O globo ocular é aproximadamente esférico. Em sua maior parte, é opaco, correspondente à região em tom escuro de cinza na figura, com exceção de uma região frontal, onde está a córnea, que é transparente. Logo após a córnea há uma lente interna, o cristalino. A região interna do globo ocular é preenchida por materiais transparentes: entre a córnea e o cristalino há um líquido, o humor aquoso; depois do cristalino o globo ocular é preenchido pelo humor vítreo. Ambos os humores têm índices de refração muito próximos ao da água, da ordem de 1,34.

Na parte interna do olho, logo após a córnea, há uma pequena abertura por onde penetra a luz, a pupila, cujo diâmetro é variável. Diâmetros entre 2 mm e 6 mm, dependendo da iluminação, são bastante típicos.

A íris é uma estrutura circular – cuja cor pode variar entre o marrom, o azul e o verde – e que controla a abertura da pupila.

A focalização da imagem deve ser feita na superfície da retina (em tom claro de cinza na figura) em especial em uma região muito densa de células sensíveis à luz, a fóvea, a qual fica na direção frontal do olho, ao longo de seu eixo de simetria (ou eixo principal).

O raio do globo ocular em um olho normal é da ordem de 1,2 cm. A córnea, cujo índice de refração é da ordem de 1,38, tem um raio de  curvatura da ordem de 0,8 cm na sua parte anterior e de cerca de 0,65 cm na parte posterior. Sua espessura é de cerca de 0,06 cm na parte central (o polo, sobre o eixo principal) e um pouco maior na parte lateral.

 

 

O cristalino é uma lente cujos raios de curvatura podem variar, para focar imagens mais próximas ou mais distantes. Embora no desenho as superfícies anterior e posterior tenham iguais curvaturas, na realidade o raio de curvatura no centro da superfície anterior é de cerca de 0,8 cm e da posterior da ordem de 0,6 cm. A espessura do cristalino é de aproximadamente 0,4 cm. A distância entre a superfície anterior do cristalino e a córnea é de cerca de 0,35 cm. O índice de refração do cristalino não é uniforme, variando do centro para a borda. Entretanto, o aproximaremos por 1,42.

As dimensões geométricas variam de pessoa para pessoa. Por exemplo, olhos míopes são mais longos e hipermétropes mais curtos ao longo da direção do eixo principal. Há, também, variações da distância entre o cristalino e a córnea; os raios da córnea também podem variar de pessoa para pessoa. Os valores adotados aqui servem apenas para fornecer aproximações bastante adequadas para os propósitos deste texto.

 

 

         Apêndice B – Dioptro esférico

 

         Neste Apêndice, apresentamos a dedução de uma equação bastante útil da óptica geométrica a partir da qual diversas outras podem ser obtidas, inclusive várias usadas neste texto. A dedução segue a seqüência tradicionalmente encontrada nos livros didáticos [4].

         Considere uma superfície esférica, de raio R, separando meios de índices de refração n1 e n2, como indicado na Figura B1. Um feixe luminoso emitido por um ponto P, a uma distância p da superfície, que incida em seu pólo seguirá na mesma direção de incidência (raios A e A’ da Figura B1). O raio indicado por B na figura, ao incidir sobre a superfície formando um ângulo α com a normal é refratado segundo o ângulo β indicado. A relação entre esses ângulos é dada pela lei de Snell,

 

   ,   (B1)

 

onde n1 e n2 são os índices de refração do meio e do dioptro, respectivamente. O objetivo é determinar o ponto Q em que A’e B’ se cruzam. Como veremos, quando o ângulo α é pequeno, a posição do ponto Q independe dele. Para continuar os cálculos e determinar a distância q indicada na figura precisamos da relação geométrica correspondente ao esquema da Fig. (B1). Pela lei dos senos, temos para o triângulo PSO a relação

 

   .   (B2)

 

A lei dos senos aplicada ao triângulo SOQ fornece a relação

 

   .   (B3)

 

Quando o ângulo de incidência é pequeno, podemos aproximar os senos pelos respectivos ângulos. Fazendo isso e combinando as equações (B1), (B2) e (B3) temos

 

   .   (B4)

 

Como os ângulos θ e θ’ são pequenos, podemos aproximar o arco de circunferência formado pela intersecção dos raios A e B com a superfície por

 

   .   (B5)

 

Usando as equações (B4) e (B5) obtemos, finalmente,

 

   .   (B6)

 

 

Como foi afirmado, a distância entre o ponto Q e a superfície independe do ângulo de incidência. Essa equação básica do dioptro esférico é usada em diversas deduções do texto. Aos raios que incidem com ângulos pequenos (o ângulo α acima) e que, portanto, emergem também a ângulos pequenos, damos o nome de paraxiais. Todas as propriedades e equações deduzidas são válidas apenas para esses raios.

         A equação (B6) tem validade bastante geral desde que definamos adequadamente as grandezas envolvidas. Se o ponto P estiver à direita da superfície, então a distância p será negativa; se a superfície de separação entre os dois meios, considerando a direção de incidência da luz, for côncava, o raio R será negativo; se q<0, então a imagem estará à esquerda da superfície que separa os dois meios.

 

 

 

 

Referências

 

 [1] Michael F. Land e Russell D. Fernald, 1992. The evolution of eyes, Annu. Rev. Neurosci. 15 pag.1 (1992)

 

[2] E. V. Costa e C. A. Faria Leite, O Olho Humano: Acomodação e Presbiopia, Rev. Bras. Ensino de Física 20 (3) (1998) 289

 

[3] O. Helene, A simple model of the human eye, Phys. Teach. 48 (2) pág. 142 (2010)

 [4] H. M. Nussenzveig, Curso de Física Básica: Ótica, Relatividade e Física Quântica,  Ed. Blucher, São Paulo, 1998



[1]  Além de esferas de vidro, há outras soluções para a construção do modelo do olho humano aqui apresentado. Qualquer esfera transparente pode ser usada; caso seja oca, pode ser preenchida com água. Algumas garrafas de bebida são quase esféricas e, se preenchidas de água, também podem servir.