Relatividade no jornal

 

            Se você está correndo dentro de um trem com uma velocidade de 3 m/s em relação ao trem, e o trem está se deslocando com uma velocidade de 10 m/s, na mesma direção, em relação ao solo, então sua velocidade em relação ao solo é de 13 m/s. Se você estiver correndo na direção contrária àquela que o trem se desloca, então sua velocidade em relação ao solo é de 7 m/s. Tudo muito óbvio. É óbvio, também, que quando o relógio do passageiro do trem marca um determinado horário, o relógio da estação marcará exatamente o mesmo horário. Essas transformação, habituais no nosso dia-a-dia, são as transformações da física clássica, antes da descoberta da relatividade.

 

 

         Essas transformações de um sistema de referência (por exemplo, o trem) para outro sistema de referência (o solo) são as transformações com que todos estavam de acordo no final do século XIX e que explicam muito bem as coisas de nosso dia-a-dia. Como elas funcionavam muito bem para velocidades pequenas quando comparadas com a velocidade da luz, até o final do século XIX ninguém tinha percebido suas limitações.

Entretanto, entre o final do século XIX e início do século XX os físicos eram instigados por um grande problema: alguns resultados do eletromagnetismo (como ficou conhecida a unificação dos fenômenos elétricos com os fenômenos magnéticos) eram incompatíveis com as transformações clássicas usadas quando se mudava de sistema de referência. Não vamos discutir aqui as transformações do eletromagnetismo: vamos saltar para as transformações relativísticas.

 

 

A descoberta de Einstein

 

Considere dois sistemas de referência, ilustrados na figura 2. Um deles – que vamos chamar de S’ – deslocando-se em relação a outro – que vamos chamar de S- com velocidade v. (É como se o sistema S fosse fixo no solo e o sistema S’ um foguete, representado pela seta grande da figura 2.) Para localizar um ponto no espaço, por exemplo, a mosquinha da figura 1, vamos usar dois sistemas de coordenadas: (x,y,z) no referencial S e (x’,y’,z’) no referencial S’, o foguete. Suponha, para simplificar, que os eixos x e x’ são coincidentes, com o eixo x’ se deslocando com velocidade v em relação ao eixo x. Suponha, também, que em cada um dos referenciais haja um relógio e que quando as origens dos dois sistemas de coordenadas coincidiram ambos os relógios marcavam zero: t=0s e t’=0s. Note que os sistemas de coordenadas podem ser riscos feitos no chão e nas paredes do foguete, o mesmo valendo para o referencial S; o fato dos relógios marcarem zero quando as origens coincidiram pode ser conseguida colocando-se pinos metálicos nas origens dos dois sistemas de coordenadas que, quando se encontraram, fizeram disparar os relógios.

Assim, um evento que ocorra em um certo ponto do espaço e em um certo instante no referencial S, por exemplo, a mosca levantou vôo, é caracterizado por (x,y,z,t). O mesmo evento será caracterizado por (x’,y’,z’,t’) no referencial S’.

As transformações relativísticas são bem diferentes das transformações da física clássica. Considere os dois sistemas de referência da figura 2, o solo, S, e o foguete, S’. Se um ponto no espaço tem coordenadas (x,y,z) no referencial S, como a posição de uma mosca, pela física clássica esse mesmo ponto terá as coordenadas x’=x-vt, y’=y e z’=z no referencial S’. E, claro, t=t’. Mas essas não são as transformações relativísticas.

 

 

As transformações relativísticas (chamadas de transformações de Lorentz[1]) são

                  

onde v é a velocidade do referencial S’ em relação ao referencial S e c é a velocidade da luz no vácuo, aproximadamente 3,0∙108 m/s.

         Note que se v for muito menor do que c (e mesmo o mais rápido dos foguetes consegue uma velocidade de cerca de 40.000 km/h em relação à Terra, ou seja, 0,000037c) é muito difícil, muito mesmo, perceber um efeito relativístico.

A velocidade da luz e a percepção dos fatos

 

Antes de continuar a explorar as transformações relativísticas, é bom evitar desde já um erro bastante comum. A luz se propaga com uma velocidade de aproximadamente 300.000 km/s. Assim, quando você vê alguma coisa acontecendo a uma certa distância, esteja certo que ela aconteceu um pouco antes de você perceber, pois decorre algum tempo para que a luz chegue até os seus olhos. Em distâncias pequenas essa diferença de tempo é irrisória. Por exemplo, um raio que ocorreu a 300 m de distância de uma pessoa foi percebido apenas um milionésimo de segundo depois, 0.000001 s! Esse tempo é muito menor do que o tempo de duração do raio, o tempo de processamento de imagens formadas na retina pelo cérebro humano, ou o tempo que alguém demora para se assustar com o raio etc. Entretanto, em grandes distâncias, esse tempo não é desprezível. Por exemplo, a luz do Sol que nos ilumina em um certo instante foi emitida cerca de 8 minutos antes.

Assim, se alguma coisa for observada no Sol, para saber quando ela ocorreu, precisamos subtrair do tempo que ela foi observada os 8 minutos que a luz demorou para chegar até aqui.

A consideração acima é importante para entender como as pessoas que estão em um mesmo referencial concordam com o instante que alguma coisa aconteceu e, também, como é possível haver relógios sincronizados em um referencial. Vamos, então, voltar a eles. Se uma mosca levantou vôo, qualquer observador que está parado em relação ao solo, ou seja, no referencial S, concordará que ela levantou vôo no mesmo instante t, ainda que essas diferentes pessoas possam ter tomado conhecimento disso em instantes diferentes. O que cada um deverá fazer quando perceber que a mosca levantou vôo é olhar no seu relógio e subtrair o tempo que a luz levou para ir da mosca até seus olhos. Assim, todas as pessoas em um mesmo referencial dirão que um determinado evento ocorreu no mesmo instante.

É também possível que haja relógios perfeitamente sincronizados em qualquer lugar de um referencial. Se alguém quer saber se um determinado relógio em S está sincronizado com o relógio do seu pulso, basta olhar para o outro relógio e subtrair o tempo que a luz demorou para chegar até seus olhos.

A razão pela qual estamos discutindo essa questão é para preparar a análise de um artigo publicado na imprensa[2], no qual foi feita uma confusão entre o instante que uma coisa ocorreu e o momento em que uma pessoa toma conhecimento disso. A Matéria jornalística está reproduzida na figura 3.

 

 

Confusões relativísticas

 

Embora não haja grandes interpretações filosóficas que possam ser obtidas a partir das transformações relativísticas, elas forneçam exemplos muito interessantes de como as coisas acontecem.

         No que segue, vamos fazer referência à matéria jornalística abaixo, que tenta ilustrar um aspecto muito interessante da natureza: o fato que coisas simultâneas em um referencial podem não simultâneas em outro referencial.

         O quadro 1 da figura 3 enuncia o problema “A nave A (em movimento) e B (parada) estão entre duas estrelas, a mesma distância de cada uma delas. As duas estrelas explodem e emitem luz na direção das naves”. Nessa explicação faltou dizer que o “em movimento” e “parada” se referem às duas estrelas, que estão paradas uma em relação à outra. Na linguagem relativística, poderíamos dizer “A nave A e as estrelas estão paradas em um mesmo referencial e a nave B está se deslocando em relação a esse referencial com velocidade v”, ou ainda, dizer “A nave A e as estrelas estão paradas em um mesmo referencial e a nave B está parada em um referencial que se desloca em relação ao anterior com velocidade v”. Essas duas frases descrevem a mesma situação.

         A frase do quadro 2 da figura diz que “A luz da estrela vermelha chega primeiro à nave A. Para seus tripulantes, este é o momento de sua explosão. Para os tripulantes da nave B esse evento ainda é futuro”. Vamos analisar essas afirmações por partes.

Primeiro, dizer que a luz da estrela vermelha chega primeiro à nave A e que esse é o momento de sua explosão está errado: aqui, confundiu-se o instante que uma coisa foi percebida com o instante que ela ocorreu. Como afirmado mais acima, em “A velocidade da luz e a percepção dos fatos”, o autor da frase confundiu duas coisas: a explosão da estrela e a percepção desse fato pelos tripulantes. Para os tripulantes saberem quando a estrela explodiu, eles precisam subtrair o tempo que a luz demorou na viagem desde a estrela vermelha até eles do instante que eles perceberam a explosão.

 

Texto explicativo retangular com cantos arredondados: Se você imprimir em branco e preto, lembre que esta é a estrela vermelha. A outra, é a azul.

Figura 3

 

A segunda parte do texto, “Para os tripulantes da nave B esse evento ainda é futuro”, é dúbia.  Essa frase pode dar a entender que os tripulantes das duas naves pudessem trocar informações entre eles de forma instantânea e alguém na nave A perguntar a alguém da nave B se a estrela já explodiu. Nenhum tipo de informação pode viajar mais rápido que a luz e, portanto, a conversas entre tripulantes de diferentes naves demoraria algum tempo. O que os tripulantes podem fazer é anotar em um papel em que instante as estrelas explodiram e, depois, com toda a calma, pararem suas naves e sentarem-se todos em torno de uma mesa e compararem os valores anotados. Eles obterão valores diferentes, como vamos ver mais abaixo. Essa segunda frase do quadro 2 não tem sentido.

         O texto do quadro 3 repete o mesmo erro do anterior, confundindo o tempo em que os tripulantes tomaram conhecimento do fato e o instante em que o fato ocorreu.

         A segunda parte do texto do quadro, novamente, para ter algum sentido, precisaria que houvesse algum sistema de comunicação instantânea entre os tripulantes das duas naves, o que é impossível. Portanto, a frase não tem sentido.

 

Usando as transformações relativísticas

 

Vamos usar as transformações relativísticas para interpretar o que ocorreu para os tripulantes das naves A e B.

Considere que a nave B e as duas estrelas estão em um mesmo referencia, digamos, S. Vamos supor, também, que a nave B esteja a meio caminho das duas estrelas e vamos chamar de d a distância entre B e cada uma das estrelas. Assim, no referencial S a estrela azul tem coordenadas x=-d, y=0 e z=0; a estrela vermelha tem coordenadas x=d, y=0 e z=0. Finalmente, vamos supor que as estrela explodiram simultaneamente no referencial S, no instante te.

A nave A está em um referencial que se desloca para a direita em relação a S com velocidade v. Vamos calcular o instante que a estrela azul explodiu no referencial S’, usando a equação 4:

 

 .   (5)

 

No lado direito dessa equação aparecem as coordenadas x e t do referencial S. Como x=-d e o instante da explosão da estrela azul no referencial S foi te, então, no referencial S’ a explosão da estrela azul ocorreu em

 

 .  (5)

 

A estrela vermelha, em x=d no referencial S, explodiu no instante

 

   (6)

 

no referencial S’. Ou seja, dois eventos simultâneos no referencial S, não são simultâneos no referencial S’.

         Para os observadores no referencial S’, a tripulação da nave A, a estrela vermelha explodiu antes que a estrela azul. Esse fato não tem nada a ver com o instante que os tripulantes da nave A tomaram conhecimento da explosão das estrelas. Qualquer que fosse a posição da nave A, desde que ela estivesse andando para a direita (da figura 3) em relação à nave B, a estrela vermelha explodiu antes, mesmo que ela estivesse bem perto da estrela azul e tomasse conhecimento primeiro de sua explosão. A figura 4 ilustra essa situação.

 

 

 

 

O que a relatividade não diz

 

         Não há nada de subjetivo na relatividade. De fato, para observadores da nave A as explosões não foram simultâneas; para os observadores da nave B, foram. Não há nada de profundamente filosófico, também. Isso deve-se apenas ao fato das coordenadas espaciais x, y e z e do tempo t não serem independentes, como parecem ser no nosso dia-a-dia, acostumados que estamos com pequenas velocidades que fazem com que as sutilezas das transformações relativísticas sejam imperceptíveis.

 

 

Armadilhas

 

         A Física e suas equações são cheias de armadilhas. Embora seja fácil de escapar de parte das armadilhas, algumas podem ser fatais. Por exemplo, um astronauta dentro de um satélite que gira em torno da Terra parece estar livre da força gravitacional, pois se ele soltar alguma coisa que estava segurando, essa coisa fica “flutuando” na sua frente. Além disso, ele mesmo não tem a sensação de peso que tinha quando estava na Terra. Alguém, caindo em uma armadilha, poderia dizer que o movimento orbital do satélite “compensa” a força peso, ou que uma coisa girando em torno da Terra não está sujeita à força gravitacional etc. Nada disse é correto. O astronauta dentro da nave e a própria nave têm peso e são acelerados na direção da Terra. No entanto, o efeito dessa aceleração não é fazer nave e astronauta despencarem sobre a Terra, mas, sim, alterar a direção de sua velocidade. O peso é exatamente a força necessária para que nave e astronauta façam um movimento circular em torno da Terra.

         Cair em armadilhas é sempre um risco; um risco que aumenta quando se é descuidado. Às vezes, simplificar muito uma explicação aumenta a chance de se cair em armadilhas, comprometendo a veracidade da própria explicação e confundindo aquele à qual a explicação se destina.



[1] Em homenagem a Lorentz, que descobriu serem essas as transformações necessárias para que as leis do eletromagnetismo valessem em qualquer referencial.

[2] O Estado de S. Paulo, 30/janeiro/2005, página A14